Gleiciane da Silva
Tempo ruim comigo não existe Distante cerca de 4 mil quilômetros do seu sonho, Gleiciane não viu dificuldades de enfrentar tudo. Quem olha para a Gleiciane da Silva trabalhando dentro de um Centro Universitário na maior metrópole brasileira nem imagina o caminho percorrido por esta jovem de 25 anos. As roupas simples e o sorriso […]
Texto: Por Mairon Hothon
Tempo ruim comigo não existe
Distante cerca de 4 mil quilômetros do seu sonho, Gleiciane não viu dificuldades de enfrentar tudo.
Quem olha para a Gleiciane da Silva trabalhando dentro de um Centro Universitário na maior metrópole brasileira nem imagina o caminho percorrido por esta jovem de 25 anos. As roupas simples e o sorriso sempre estampado no rosto mostram apenas parte dessa história que começa a alguns bons quilômetros da capital paulista, mais exatamente 2.930KM, no município de Medicilândia, região sudoeste do Pará.
Adotada ainda recém-nascida por sua tia, Gleiciane e seus irmãos sempre foram ensinados que tudo na vida se consegue com muita dificuldade, principalmente para aqueles que não dispõem de muito dinheiro. Ao todo, ela tem oito irmãos, 21 sobrinhos, duas famílias e no meio desse povo todo, é um exemplo de perseverança, em alguém que acredita que os sonhos podem ser realizados por meio dos estudos.
Vinda de uma região onde a agricultura é a mola propulsora da economia, Medicilândia é considerada a capital nacional do Cacau. Os índices de formação acadêmica são baixos, o caminho da maioria dos jovens é terminar o Ensino Médio e seguir como comerciantes, agricultores ou mesmo concursados do setor público. Uma cidade com média de 30 mil habitantes.
Ainda criança, a paraense já sentia na pele os desafios para crescer na vida. Por morar na zona rural do município, ela precisava acordar às 4h, caminhar três quilômetros até o ponto onde pegava um caminhão pau de arara até chegar à cidade para estudar.
“Quando eu estava no Ensino Fundamental, ainda tinha uma escola lá perto do sítio, mas mesmo assim eu precisava acordar às 4h30. Colégio mesmo só tinha um na cidade, nem tinha para onde correr. Lembro que minha mãe me acordava, eu tomava um banho gelado, enquanto ela preparava um pão, com manteiga e achocolatado. Era escuro quando saia para pegar o pau de arara, relembra.
Por ser de uma família humilde, Gleiciane além de se esforçar nos estudos, também tinha suas obrigações em casa. Caminhado os outros três quilômetros de volta, ela chegava em casa, almoçava a “quentinha” que sua mãe deixava e eu ia para ajudar na roça. Como em sua casa não tinha energia elétrica, o que só chegou em 2004 com o programa Luz para Todos, o fim de tarde era na casa das primas para poder assistir televisão.
“A tecnologia era algo distante da gente, meu primeiro celular só foi com 15 anos e minha conta do Facebook só aconteceu mesmo quando vim pra São Paulo, só para não perder o contato com meu contato com os amigos de lá”, conta.
Decisão determinada
Gleiciane sempre foi muito religiosa e gostava de se envolver nas atividades da igreja. Quando adolescente ela queria muito experimentar o que suas primas tanto falavam, viver dentro de um internato, já que elas estudavam no Instituto Adventista Transamazônico Agro-Industrial (IATAI). Apesar de já ter terminado o Ensino Médio, ela ainda sentia à vontade de ter essa experiência.
Já no curso técnico de Enfermagem, Gleiciane passava a semana na cidade e só voltava para casa aos finais de semana, e foi em uma dessas semana que ela se encontrou com o seu pastor da igreja que mostrou uma propaganda do Unasp. “A imagem era tão simples, mas eu gostei tanto daquilo, eram jovens tocando violão debaixo de uma árvore. Eu falei, eu vou para esse lugar, custe o que custar, não sei como, mas eu vou”, afirma.
Uma das características da Gleiciane é a determinação e a persistência. Como ainda faltava um ano para terminar o curso técnico, mas ela queria tentar uma nova vida em São Paulo já no começo do ano seguinte, ela decidiu ficar em período integral no hospital só para terminar todos os estágios em seis meses. Ela entrava todos os dias às 7h e saia às 23h para conseguir completar a carga horária.
“Foi muito estressante. Além do estágio, eu precisava estudar para o vestibular, ver questões de mudança, queria pleitear uma bolsa de estudos, aturar as pessoas que vinham com comentários para me desanimar. Minha mãe já era uma senhora na época e não queria que eu fosse. Foi uma luta”, ressalta.
A correria foi grande e os prazos bem apertados. O último de estágio antecedeu o dia da viagem para São Paulo. Com muito frio na barriga, Gleiciane sabia que não tinha nada o que perder, mas nunca saberia se ia dar certo se não tentasse.
Chegando na cidade grande
Uma viagem de quatro dias dentro de um ônibus não é a das mais agradáveis, junto com sua amiga que estava noiva e deixou o amado no Pará para embarcar nesse sonho, a vontade de voltar quando ela viu que era real mesmo foi grande. Quatro dias atravessando quatro estados, com direito a muitos enjoos estomacais, dúvidas, choros e incertezas, mas ela apenas foi, como mesma diz: “não queria dar o gostinho a ninguém da minha desistência”
O quarto dia amanhecia e os prédios cinzas já tomavam conta do cenário, um amigo que já estudava no Unasp foi buscá-las na Rodoviária do Tietê. Quanta gente, quantos carros, quantos cheiros, quanto movimento, quanta coisa ao mesmo tempo. E para subir na escada rolante, ela ri e diz que sentiu medo de cair, quase um mundo diferente de tudo que ela tinha vivido até ali, um misto de deslumbramento e medo ao mesmo tempo. Sua jornada só estava começando.
Ao chegar na Faculdade, seu primeiro aprendizado foi que todo sonho passa por pessoas, e são elas que dão tempero especial da vida. Dividindo o quarto com mais cinco jovens, foi a amizade delas que a ajudou em muitos momentos de tristeza e da falta que a família fazia. Entre as primeiras tarefas como bolsista a limpeza das salas da faculdade fazia parte do seu currículo.
Mas de onde viria o dinheiro para ela conseguir tirar xerox, comprar livros, se alimentar e viver de forma digna? E aí que entra o que ela aprendeu quando criança: fazer de tudo um pouco e não ter vergonha de trabalhar.
“Eu estudava de manhã, de tarde cumpria com as atividades da bolsa, no caso a limpeza, e a noite ainda consegui um emprego na cantina do colégio e cuidava de uma criança. Foi assim os quatro anos da graduação. Meu banho e minhas refeições eram com tempo contado, se eu me levantasse para sair da cama, todo meu dia era afetado”, enumera.
Para estudar, Gleiciane enfrentava outro desafio, como fazer as pesquisas das aulas sem um computador? Após o dia de estudos e trabalhos, ela chegava a seu quarto, tomava banho, dormia até às 1h30 da madrugada e depois ia estudar pelo computador das amigas, ela esperava elas dormirem, para poder ter emprestado o computador. Foi assim que Gleiciane passou mais de três anos.
Sabor de mel
Diferente dos seus amigos que saiam de férias para curtir o merecido descanso, ou mesmo para vender livros, atividade conhecida como colportagem, ela passava os meses de recesso para vendendo mel em saches de casa em casa. Como seus irmãos custeavam a passagem de volta para casa, ela aproveitava os momentos com a família para vender por Medicilândia caixas de mel a fim de conseguir dinheiro para pagar os estudos.
“Como eu não tinha dinheiro, meu acerto com o financeiro da faculdade era mais ou mesmo assim: eu passava o semestre inteiro devendo e na volta do seguinte, pagava a dívida atrasada e me matriculava novamente, ou seja, sempre estava devendo, por isso não podia voltar das férias de mãos vazias. Tinha que vender todos os méis”.
Das férias, muitas histórias ajudam a encher seu repertório de experiências. Teve férias que ela ao chegar em Medicilândia teve a surpresa de saber que uma semana antes já havia passado outra pessoa vendendo mel, ou mesmo a transportadora ter atrasado a encomenda e ela precisar vender todas as caixas em uma semana.
Do interior ao exterior
A experiência da estudante de Psicologia não coleciona apenas momentos difíceis e cansaço. Foi nesse mesmo período que ela teve contato com o estrangeiro. Por meio das missões voluntárias que a instituição proporciona semestralmente, ela conheceu o Chile a França. Dias de trabalho braçal, como a construção de uma escola, mas de um contato cultural indescritível.
“Quando a gente foi a Paris, ofereceram para a gente ficar mais uns três dias a fim de conhecer a cidade, enfim, passear um pouco. Uma senhora de lá que havia se envolvido também com as Feiras de Saúde ofereceu a casa dela para ficarmos, imagine, a gente não pagou nada, tinha comida, banho quente, wi-fi grátis, tudinho. Tenho de reclamar de alguma coisa? De jeito nenhum né”, brinca.
Foram quatro anos de vivências marcantes na vida da Gleiciane que hoje pode falar com propriedade o que significa buscar um sonho. Nesse caminho, muitas alegrias também fizeram parte do seu repertório, realizações pessoais e conquistas emocionais, amizades que ficarão para sempre. No final do ano passado, Gleiciane se formou em Psicologia pelo Unasp SP, hoje já entrou em uma pós-graduação e agora estuda para passar no mestrado da Universidade de São Paulo (USP) no final do ano.
A correria dos seus horários não diminuiu, mas como ela mesma diz: “Quando a gente faz algo que parece sem lógica ou até vergonhoso, contudo pensando na recompensa maior, aquilo se torna fácil. Quando eu lavava os banheiros daqui eu pensava que aquilo ia passar, que eu estava lavando banheiro naquele momento para não fazer nunca mais. Vale a pena ralar por aquilo que a gente acredita”, aconselha.